quinta-feira, 29 de maio de 2014

O SERRO CHORA ADELMO LESSA

A urgência do inevitável nos toma de assalto e alcança a sutileza dos nobres sentimentos. A ausência determina o não dito, o não feito; adiar as pretensões arrisca permitir ao tempo o esquecimento ou a impossibilidade. A sensação de eternidade se rompe na fatalidade da vida e já não podemos cumprir os anseios; já não podemos resgatar o que passou. O Ekos de Minas, se empresta a este espaço, pede licença a leitores e editores, para cumprir o que não pode esperar. Lança loas à Vila do Príncipe pela genuína missão de plantar nobres intenções na história de sua gente. E se comove por ser esta uma mensagem póstuma, quando teria sido indiscutível apresentar Adelmo Batista Lessa em suas ternas e sempre firmes palavras. 

A lembrança da gentileza e sorriso farto é a primeira. A perseverança e amor a sua terra persegue a memória nos feitos e refeitos investidos na posteridade. O Ekos toma a lembrança dos que mereceram a distinção de conviver com este serrano e nos conduz ao ano de 1961, quando Adelmo Lessa emprestava seu tempo e dedicação a alunos de ensino médio, empenhado em ensinar valores e ética aos jovens do Ginásio Ministro Edmundo Lins. Sete anos mais tarde, sua liderança e competência o conduzem à Direção desta Instituição de Ensino, em uma época em que importavam mais os resultados humanos, e menos os financeiros. Percorreu esta missão até 1983. Adelmo Lessa esteve presente em outras tantas empreitadas para garantir ao Serro futuro. Participou da fundação da Companhia Telefônica do Serro, Casa de Apoio Bom Samaritano e Coral Masculino; contribuiu com o Sindicato dos Produtores Rurais do Serro; CRIASER, Coral da Melhor idade e foi Ministro da Eucaristia. Foi Prefeito, Vice-Prefeito, Vereador - tendo atuado como Presidente da Câmara - do Serro e contribuía com a atual Administração como Secretário de Saúde. 

A Casa de Caridade Santa Tereza deve a Adelmo Lessa e aos seus companheiros de diretoria - entre eles o amigo Benilde Mourão - a sua recente transformação. Como Diretor-Presidente nos anos de 2012 e 2013, Adelmo doou seu tempo e trabalho para a reestruturação do Hospital do Serro, então, ameaçado de fechar as portas. Hoje, a Casa de Caridade presta serviços à comunidade, com as contas em dia e grandes melhorias estruturais. Sempre ao seu lado, a companheira nas últimas cinco décadas, Consolo Carvalhaes Lessa, acolheu as realizações do marido e cumpria as portas de casa sempre abertas e a mesa farta, com alegria e capricho próprio das moças serranas. Aos filhos, Adalberto, Solange, Adelmo Júnior e Soraya, Adelmo dedicou seu legado e os melhores exemplos.

“A trajetória de vida de Adelmo Lessa é de honestidade, perseverança, competência, determinação, companheirismo e solidariedade. Seu exemplo é marca registrada por onde andou, suas obrigações se cumpriram, sua dinâmica deve ser seguida. A amizade que ele conquistou é infinita, o seu carisma foi semeado, sua missão se cumpriu. O Serro perdeu um filho ilustre, o céu ganhou um aliado”, conclui a sobrinha, amiga e admiradora de Adelmo Lessa, Adenilde Carvalhaes Silveira Silva, que nos conduz ao sentimento unanime: o Serro chora Adelmo Batista Lessa.



sexta-feira, 11 de abril de 2014


A COLHEITA MANTÉM A COERÊNCIA DA SEMENTE


Sorriso sempre no rosto. Uma palavra de carinho, consolo ou gentileza sempre na ponta da língua, sabedoria para quem solicitar... Assim é Francisco Epaminondas dos Santos, conhecido como Nondas ou Noquinha, proprietário do Restaurante Vila do Príncipe, espaço serrano já consagrado pelos anos de portas sempre abertas e a simpatia do dono.
É provável que muitos moradores do Serro tenham histórias para contar sobre o Vila do Príncipe. Na edição nº 6, o Ekos de Minas publicou o quadro e a história de Lúcio Flávio Reis Simões e Magno Zé Ó.
Aqui ecoamos a voz do menino Francisco, que muito cedo se iniciou na lida laboriosa dos humildes. Filho de Eva Martinha dos Santos e João Catarina dos Santos, o menino do Morro Centenário nasceu no dia 9 de março de 1949. Dona Eva cuidava dos dez filhos com dedicação ao lar e lavando roupa para complementar a renda da casa. Enérgica e amorosa, recebia a ajuda dos filhos, como Nondas, que aos sete anos trabalhava na limpeza das ruas da cidade, contratado pela Prefeitura Municipal, pelejando com a insistente vegetação que se esgueira por entre as pedras do calçamento, enfeita e intimida as valentes vias do Serro. “A gente era pobre demais. Então eu recebia o dinheirinho da Prefeitura toda semana e a primeira coisa que eu comprava era um pão molhado e um copo de groselha no Bar do Lindolfo (Bar que ficava no Centro do Serro, onde hoje está instalada a agência do Banco Itaú), o resto eu entregava para minha mãe”, lembra Nondas.
Outras lembranças chegam ao alvorecer, antes mesmo que o astro rei venha iluminar o friozinho das manhãs serranas: “Quando não tinha serviço na Prefeitura, minha mãe nos acordava de madrugada para buscar lenha. Voltávamos antes das sete horas e, depois da Escola, vendíamos a lenha”. 
Aos doze anos, Nondas tem a primeira oportunidade de testar seu tino para os negócios. Dona Eva lavava roupas para o Senhor Jacinto Magalhães, que tinha um armazém instalado na Praça Ângelo Miranda, onde hoje está a Cooperativa dos Produtores Rurais do Serro. Resultado: “Ele me ofereceu trabalho no seu armazém e lá fiquei de 1960 a 1965, fazendo entregas. Depois o armazém fechou e o dono me indicou para trabalhar em Belo Horizonte. Fui fiquei lá e não gostei. Com 60 dias voltei para o Serro”, disserta.
No retorno da Capital surge a semente do Vila do Príncipe, batizado com este nome pelo Senhor Alberto Pimenta Lessa: “Quando cheguei de volta ao Serro, numa quarta-feira, Alberto Lessa tinha aberto um restaurante na Praça João Pinheiro, e estava na porta do estabelecimento quando desci do ônibus. Ele me chamou: - Preciso de um rapaz para lavar copos, você quer? Vou uai, respondi. No dia seguinte estava lá. Comecei lavando copo, depois fui atender mesa e cheguei até ao ponto em que comprei na mão do filho dele!”, comemora.
O restaurante funcionou na Praça João Pinheiro até 1980, quando o filho de Alberto Lessa, Adelmo Batista Lessa assumiu o negócio e o transferiu para a parte debaixo de sua casa, na Praça Dom Epaminondas. “Eu gerenciava tudo”, conta Noquinha.
Bom, para continuar esta história, é preciso convidar um importante personagem, a Senhora Graciola Rocha Silva Santos, com quem Nondas se casou em 1972. Dona Graciola é o estimulo e a grande companheira de Nondas na empreitada que agora está por vir: “Em 1990, mais ou menos, decidi que já era hora de montar um restaurante para mim. Convidei o Francisco (Francisco Jairo Nunes da Cunha Pereira) para ser meu sócio e falei com o Adelmo: - Olha Adelmo, não vou mais trabalhar para você. Vou abrir um restaurante para mim. O Adelmo me chamou: - você não vai abrir um restaurante, eu vou vender o meu para você. Assinei 24 promissórias e, como já tinha combinado com o Francisco, convidei-o para ficar comigo. Ficamos juntos três anos e nos separamos e aqui estou até hoje”, sorri.
Em seus quase 50 anos de experiência em atendimento ao público no Vila do Príncipe, Nondas exercitou o que aparentemente já sabia: paciência e humildade. “O balcão é uma faculdade. Você aprende, conhece as pessoas. Todo mundo é diferente. Não existem pessoas iguais. Cada um é único. É fundamental ser humilde e calmo. Aprender a escutar as pessoas. Todo dia acontece uma coisa diferente. Uma vez, um senhor me pediu leite quente. Servi o leite e ele disse: - Eu pedi leite quente. E jogou o leite em mim. O Adelmo quis brigar com o sujeito, eu pedi calma e disse para ele deixar. É preciso equilíbrio emocional. A gente lida com todo tipo de gente, gente boa, gente ruim. Tenho 47 anos de balcão e nunca tive problema com ninguém. Acho que vou pendurar minha chuteira com a satisfação de não ter feito inimigos”, filosofa o empresário, e completa: “É mais fácil chorar com quem chora do que rir com quem ri, sabe por quê? O ser humano é muito egoísta, é a nossa natureza.  É sempre importante se relacionar bem com as pessoas. É sempre bom ser gentil. Todo mundo tem seu valor e gosta de ser bem recebido”.
E o Ekos de Minas amplia suas histórias, agradecendo o breve, mas infinito ensinamento das palavras de Nondas e se prepara para a próxima aventura... sugestões são sempre bem-vindas!

VÃO-SE OS ANÉIS, FICAM OS DEDOS

Das terras serranas, um sem fim de sonhos dourados escoou para enfeitar os desejos de outros povos, de outras gentes. Os veios de sangue da terra jorraram intransigentes ao deleite das dragas inescrupulosas que sem piedade garimparam anseios de riqueza. E muitos se foram... E muitos ficaram... E outros tantos inspiram o mesmo sonho que não brota mais em intensidade ou sequer alimenta o corpo na lida cotidiana. E o Serro viu serem erguidos e abandonados castelos dourados que não são mais do que areia... infértil e sem vida. E a história se perpetua na extração insolente das entranhas da terra, dos leitos dos rios, das matas que outrora foram virgens. E a cidade - que se formou, cresceu, murchou e se reergueu do ouro - encontra mais uma vez o seu destino na proibição do garimpo e na escassez das antes voluptuosas minas auríferas que já não fazem mais caso ao desejo do homem.
Entre tantas idas e vindas, vontades e inspirações esquecidas, passeiam o Serro e seus rincões, alimentando-se do passado e buscando a prosperidade futura, que, certamente, não está no retorno à mineração. E não é diferente no povoado de Boa Vista de Lajes, a 25 km da sede do Município.  Lá o garimpo também trouxe riquezas e abandono. Lá as famílias contemporâneas - assim como as do Serro passado - também experimentaram a opulência e a decadência e viram maridos, pais, seus homens, precisarem sair do pequeno lugarejo para alçar outros vôos e buscar em terras estranhas a sobrevivência que já não vem da natureza, mas do trabalho. As mulheres ficaram. Os filhos, a lida diária, a sobrevivência.
E então as ganas de outros sonhos constroem a esperança. Um grupo de nove mulheres antecipa o futuro e encontra na manufatura artesanal de objetos utilitários e de decoração a possibilidade de antecipar a crença em tempos melhores. A matéria prima escolhida é o capim barba de bode, abundante e típico da região. O apoio para tornar concreta a vontade veio da Associação Clube de Mães, Oscip com sede no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, e da Associação Comunitária Campos Verdes, de Boa Vista de Lages. A realização da inspiração vem com a criação do Grupo Estrela do Campo, em 2008, formado por mulheres “comprometidas com a promoção de mudanças na comunidade local”, segundo conta ao Ekos de Minas a artesã Elizângela Sales Vieira Cardoso (foto), uma das bravas que doam seu tempo e seu talento para “construir alternativas econômicas sustentáveis, amparadas nos conhecimentos tradicionais e na convivência harmoniosa com o meio ambiente”, argumenta.
O artesanato já reuniu a família de sete das nove artesãs que participam do projeto. Com os maridos em casa, a renda pode ser complementada com o plantio de frutas e hortaliças para subsistência e ainda comercialização para a merenda escolar. O manejo do capim - a inspiração que vem do cerrado - é cuidadosamente estudado com o apoio da UFVJM para não faltar matéria prima.
Assim, o Estrela do Campo ensina a harmonia com o ambiente e reforça a participação da família na construção  dos rumos que pretende o futuro, responsáveis pelas suas escolhas e conscientes da sua atuação no mundo. Pura utopia... O desafio agora, segundo Elizângela, é ensinar aos jovens que o melhor é ficar.



Vontade de abstração. Desejo de conceituar o aparente. A inerente contestação observa o desdobramento do óbvio e encontra eco em outras vozes. Aqui, o Ekos de Minas desperta para o olhar de Danilo Arnaldo Briskievicz, serrano graduado, pós-graduado e mestre em filosofia. Autor de livros e textos de história, de fotografia, de filosofia e de poesia.
No livro de fotografias Serro Olhar, Danilo desvenda o Serro antigo, preservado desde 1938, “das interferências do tempo” e convida a uma reflexão sobre a cidade: “Será que olhamos para a mesma cidade de 1938?”. “Definitivamente, não”, constata Danilo. “Os lotes superpovoados, divididos entre três, quatro famílias. A frota de carros pequenos e grandes tomando todo o espaço de fruição da vida. A necessidade comercial acima de qualquer aspecto de gentileza urbana. As praças utilizadas como espaços para lazer viram quadras de futebol. Os carros em som estonteante teimam em lembrar que o tempo é outro. O que mudou, então, a cidade ou as pessoas?
Definitivamente, as pessoas. São os moradores que optam por fazer a sua cidade. Pintam suas casas. Deixam suas antigas moradias ruírem. Ocupam o espaço público sem a preocupação com o coletivo. Aceleram seus carros e ligam seu som sem se lembrarem de que a vida coletiva é uma herança para todos. Assim, olhar o tempo em Serro, agora, impressiona. As pessoas vivem como se quisessem estar numa cidade grande.  O ritmo de vida assim se desenha catastrófico. A cidade foi inventada para pessoas em ritmo de convivência gentil. A mesma gentileza que vemos em algumas observações: os lindos jardins do Machadinho e do Paneleiro mostram que a gentileza urbana independe de recursos financeiros. Os meninos jogando bola no Morro da Páscoa sabem que a cidade ainda é um espaço para a alegria.
Olhar o Serro. Serro, olhar. Olhar para a cidade e se enxergar no tempo que passa com suas controvérsias. Tarefa difícil para o fotógrafo que nasceu na cidade onde o tempo não muito distante pulsava ainda o barroco. Até quando vamos ver no Serro o tempo que não passa? É bom registrar agora o olhar. Nesse olhar de quase desencantamento buscar a cidade setecentista inventada para ser eterna”.



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

PALAVRAS RECORTADAS OU UM ENSAIO EDITORIAL


Os Ekos da Vila do Príncipe romperam o silêncio da palavra e ocuparam o espaço em branco. Faz três anos que insistem em lançar loas e comemorar as gentes que povoam a terra e o imaginário da Vila, que já não é do príncipe, mas mantém a soberania das pessoas, lançando pelas Minas Gerais, pelo Brasil e pelo mundo incontáveis pensamentos e pensadores. Por suas páginas passaram a experiência das palavras de Feiz Nagib Bahmed, a primeira testemunha deste feito; a responsabilidade e comprometimento do médico Walter Machado; a altivez e serenidade de Mário de Almeida e Walderes Miranda; a paixão da historiadora Zara Simões; a devoção de Ari Gonçalves de Almeida; a alegria de Antônio Farnesi; a sabedoria de Geraldo de Miranda Nunes - conhecido como Seu Didi - e a delicadeza de sua esposa, Dona Celina. E o Ekos não se cansa, nesta edição lança a voz de José Reis Junior - José Rela - e de Francisco da Cunha Freire - Cici - dois singulares personagens serranos que deram vida ao cotidiano da cidade, com seu empreendedorismo e trabalho.

Mais do que narrar a história destes valorosos personagens, o Ekos pretende registrar o Serro e seus olhares para guardar no papel o que a memória pode deixar se perder. Adiar a palavra significa deixar o que precisa ser dito se dissipar... dissimular... tardar a tornar-se fôlego. Expectador das ideias e adorador das historias que compõem as vidas e venturas serranas, o Ekos de Minas transparece a arte que conta o Serro nas telas de Magno Zeó e, nesta edição, de Rafael Múcio. Na inspiração de Claudio Luciano Ferreira que reconstrói a devoção aos santos católicos em arte (foto à esquerda).

Para não deixar a palavra ir, dizer o que precisa respirar e confirmar o olhar, o Ekos de Minas inaugura a provocação editorial que, a partir desta edição, vai instigar vontades e propor novos parâmetros para o olhar. A palavra que não fala é a primeira inspiração. A sutileza do que não declara a voz, mas conta olhares e os maus dizeres, que não promovem crescimento, mas outros males: entendidos e desentendidos. 

É preciso abrigar a intenção e dissipar o desejo de agradar, desagradando o outro, para que exista desenvolvimento. A palavra que inventa intenções envenena a verdade e impede a harmonia. É preciso mudar realmente. Não apenas os atores, mas a intenção. Ampliar o pensamento para que o bem comum se sobreponha ao egoismo. Valorizar as boas iniciativas, ainda que não ofereçam benefício direto. O quintal do vizinho deve ser tão verde quanto todos os outros. O que determina o bem é o olhar e a intenção. Obrigada e boa leitura.


“O OXIGÊNIO PARA VIVER É O MEU TRABALHO”

Em 19 de maio de 1942, nascia José Reis Junior, primogênito do casal José dos Santos Reis e Maria Eugênia Dumont Reis. Hoje, o senhor de 70 anos ensina serenidade. A vida reservou a José Reis grandes desafios, a experiência bem vivida passa pela morte prematura do pai, desfiles de Carnaval e muita vida. Assumiu a família ainda menino e trabalhou duro para manter a mãe e os dez irmãos. Parou de estudar para se dedicar ao labor, mas garantiu formação superior aos irmãos, que se tornaram médico, engenheiro, dentista, professor, administrador, advogado. Casado com Terezinha Marly de Miranda Reis e pai de cinco filhos (Fernado, Luciano, Thais e as gêmeas Eliana e Elisa), José Rela - apelido que ganhou na época da escola - esbanja sabedoria. 




Trabalho
Minha historia é longa, mas é fácil resumir. Quando meu pai morreu, em 1960, eu tinha 17, 18 anos e dez irmãos menores. Fui obrigado a parar de estudar para assumir uma nova vida, tive que trabalhar para sustentar a família. Entre minha mãe, uma empregada de muitos anos, eu e os irmãos, éramos treze. Minha mãe me entregou a chave do comércio do meu pai e comecei vendendo tecidos e calçados. Por volta de 1985, montei minha empresa de show pirotécnico. Antes, em 1972, morreu um fazendeiro muito nosso amigo na região e fui a Diamantina buscar uma urna para ele. Voltei quinze dias depois para pagar a urna e pedir que ele me desse o endereço de uma fábrica. Ele não quis me entregar na hora, mas com um espaço de tempo ele me deu o telefone de uma fábrica e eu comprei cinco urnas. Lembro que, na época, minha mãe disse: - Meu filho, você está agourando o povo do Serro. Dois dias depois vendi uma urna. Se você me perguntar quem morreu ontem, não me lembro, mas desta não me esqueço: Dona Josefina, diretora de um grupo em Alvorada de Minas. Pode estar chovendo, fazendo calor, dia, noite, não tem horário. Estamos sempre com o celular ligado, de plantão, prontos para atender. O oxigênio para viver é o meu trabalho.

Casamento
Conheci a Marly e, em dezessete anos, namoramos e noivamos. Ela disse: - Você está me enrolando. Eu disse: - Eu tenho um irmão que está fazendo medicina - eu gastava com ele como se fossem hoje R$5 mil mensais. Ele se formando, você pode arrumar tudo que nós nos casamos. No mesmo ano em que meu irmão se formou, eu me casei. Hoje, tenho 39 anos de casado e cinco filhos. Dos meus irmãos, eu perdi um, o Toninho, ele era Engenheiro Civil. 
Vida 
A vida é muito boa. É como meu pai falava: - No dia em que eu morrer eu vou triste, porque a coisa aqui é boa. Eu não quero morrer não. A morte é uma coisa muito estranha, quem vai não volta para contar o que é. Não sei informar quantas pessoas já enterrei, mas ninguém voltou. Me perguntam: - Você não tem medo não? A gente tem que ter medo é de quem está vivo, quem morreu não volta mais. Nunca tive medo de quem se foi. Quando perdi meu pai, pedia para ele aparecer para mim, ficava em um lugar sozinho, escuro e ele nunca apareceu. A morte é tão normal quanto nascer, mas ninguém aceita. Os minutos e a vida passam rápido.

Carnaval 
Em 1950, meu pai dominava o Carnaval. Eu era muito menino e me lembro dele levando minha mãe para o Clube. Isso fica no sangue. Meu pai era muito alegre. Depois que ele morreu, ficamos muito tempo sem mexer com Carnaval. Mas os serranos me cobravam muito e nós voltamos. Mantivemos a tradição, por uns quinze anos. Então, a gente sem querer muda, vai ficando mais velho e passa a cansar, não querer tumulto. Sinto saudade, quando vejo uma escola muito boa, lembro do tempo da gente, mas a vida é passageira aqui. 

Legado
Minha mãe foi a primeira “mulher” que eu tive. Casei duas vezes: com a minha mãe e com a minha esposa, Marly. Foi muito boa mãe. Ela morreu, há dez anos. Convivemos por 40 anos. Quando meu pai morreu, ela me deu a chave da loja e as coisas pessoais dele e, eu tenho isso guardado no meu cofre, até hoje. Eu não tive infância, não jogava futebol, meu negócio era o trabalho. Sempre convivi com pessoas mais velhas do que eu.  A pessoa tem que saber viver, é lógico. Se você quer mudar sua vida, é preciso responsabilidade. A pessoa cai e sobe, mas para cair é muito rápido. Para construir uma vida é muito tempo, para destruir, uma semana. O melhor do ser humano é a cabeça, tendo a cabeça boa o resto está bem. Falo demais com meus filhos, respeito é muito importante. Nunca abuse das pessoas. Respeito é tudo. O mal está sempre perto, você tem que saber viver nesta terra.

Morte
Minha mãe teve um derrame e estava ao lado do meu irmão médico. Levamos minha mãe ao hospital e ela ficou 15 dias internada em Belo Horizonte. Já sabíamos que ela iria morrer. Queria fazer um enterro decente para ela e mandei buscar a urna que eu queria aqui no Serro. Acompanhei todo o preparativo do corpo, eu mesmo a maquiei. Esse dia precisei tomar calmante. Fiquei muito baqueado e, depois de uns três dias, precisei procurar um médico. Quando é seu sangue, a coisa muda. Na hora você acha que aguenta, eu aguentei, depois a ficha vai caindo. Quero que me enterrem junto com ela. Perdi meu pai, Toninho e minha mãe. Construí a morada eterna da família no cemitério do Serro. A morte é uma ida sem volta. É a sequência da vida. 

O apelido
Eu estava com seis, sete anos e meus avós, que eram fazendeiros no Deliz, vinham para o Serro e ralavam o queijo na casa da minha mãe, que geralmente guardava a rala do queijo e punha no pão para eu levar  de lanche para o Grupo. Eu muito menino, punha o pão na carteira e os meninos me roubavam a rala. Com seis, oito meses já estava com o apelido: o menino da rala, José Rela.



TRABALHO E FAMÍLIA: UM SERRANO DE VALOR

Francisco da Cunha Freire, conhecido como Cici, é um serrano de valor. Nascido na época em que a palavra bastava, Cici conserva e repassa para os filhos o legado de muito trabalho e retidão. Filho de José Azevedo Freire, o Zé Congonha, e Noemi Dayrell da Cunha Freire, Cici é casado há 42 anos com Maria da Conceição Souza Freire, com quem teve quatro filhos: Renata, Rejane, Francisco Junior e Sandra. Com o pai, iniciou a vida de muito trabalho na Padaria Santo Antônio, chamada de Pão do Serro: Zé Congonha cuidava da produção de pães e Cici era responsável pela compra dos insumos e comercialização dos produtos na região. Ainda menino, experimentava a responsabilidade e o trabalho que são o norte dos seus negócios e realizações. Bem humorado e espirituoso, sempre ao lado de Dona Conceição - que participa das histórias e feitos do marido e compartilha alegria -, Cici nos dá a oportunidade de aprender os caminhos da palavra e conhecer a sua trajetória, que ajuda a contar a história do Serro.


Infância
Desde muito pequeno, já ajudava o meu pai na padaria, amassando e enrolando o pão. Papai sempre na frente. Somos onze irmãos. A gente trabalhava e brincava na rua. Adorava descer a escadinha da Santa Rita com carrinho de direção. A gente brincava muito na Praça e tinha um jardineiro que brigava porque nós pulávamos as arvorezinhas. Lembro-me também do “Miguel Já Ouviu”, um doido que tinha no Serro, que passou em nossa casa uma vez e minha mãe começou a perguntar dos meninos. Meu irmão chegou e ele disse: - Este menino é muito bonzinho, muito educado. Na hora que cheguei da rua, minha mãe perguntou: - E este aqui? - Este é o moleque mais “ensobordinado” da Praça! (risos)

Padaria
Papai começava cedo, três horas da manhã. Quando eram seis horas, ele nos chamava para ajudar. A gente passava a massa no cilindro e enrolava o pão que entregávamos nos bares, no Colégio. Tinha um bolinho que mamãe fazia e nós entregávamos nos bares. Com 18 anos, mais ou menos, mudei para Belo Horizonte para trabalhar com meus tios, Mauro, Geraldo e Antônio, no Café Pampulha. Fiquei lá seis anos e, nesse tempo, trabalhei também na Transfarma, com transporte de medicamentos.

Casamento
Em uma vinda ao Serro, passei na casa do meu tio Geraldo e a minha tia me deu uns embrulhos para levar a Belo Horizonte. Fui à casa das meninas entregar os embrulhos num pensionato, no Prado, encontrei com a Conceição e fiquei embrulhado até hoje (risos).

Tropeiro sobre rodas
Voltei para o Serro, em 1968, para trabalhar com o meu pai. Compramos o primeiro carro para distribuir pão na região e depois outro para transportar o trigo de Belo Horizonte para o Serro. Entregávamos o pão em 16 cidades. As estradas não eram boas. A gente rodava a região toda e não tinha asfalto nenhum. Um ano que choveu muito, muitas cidades foram atingidas por enchentes, eu cheguei em Senhora do Porto e estava faltando tudo, o pessoal ajoelhou e agradeceu. Trazia cartas e levava encomendas de uma cidade para outra. De Rio Vermelho trazia carne de porco, queijo, manteiga, rapadura. Sempre tive muita sorte com o caminhão, ele não estragava na estrada, mas quando era solteiro, sexta-feira viajava para Diamantina e o carro sempre atrapalhava lá (risos)!


Loteria

Ganhei na loteria uma vez e comprei a roça. Fiquei com o bilhete no bolso mais de quinze dias. Na ida para Belo Horizonte, parei em Sete Lagoas para jantar e conferi o bilhete: ganhei o primeiro prêmio. Fui para o hotel, fechei a janela e coloquei a carteira embaixo do travesseiro com medo de ser assaltado. Fui para Belo Horizonte, carreguei o caminhão e conferi direito na Loteria Campeão da Avenida e recebi o prêmio.

Negócios 
Na década de 1970, criei a Mercearia Cilu, no casarão do Hotel Glória. Vendia frango, verdura. Aproveitava o caminhão para a entrega de pão e trazia a mercadoria de Diamantina.
Depois comecei com a venda de pneus e criamos a Cinata, perto da rodoviária. Depois construí o prédio - onde hoje ficam o Chico Motos e a Cinata - de um lado montei a Cinata Pneus e do outro a Cinata Padaria.


Cici, José Mário Pimenta, Zé Congonha e Geraldo Márcio - Bitinho



O SERRO RESPIRA ARTE


O Serro tem encantos e recantos que permeiam a obra e inspiração de um sem fim de autores, atores e artistas. O Ekos de Minas apresenta um recorte da obra de Rafael Múcio (foto abaixo), artista plástico serrano, formado pela Escola Guignard, que retornou à terra em 2006. O artista empresta ao Serro seu olhar e sua arte e dissipa o amor à terra natal pelos rincões Gerais. O trabalho de Rafael Múcio está em permanente exposição em seu ateliê instalado na Rua São José.

Na capa, a obra de Cláudio Luciano Ferreira, outra inspiração que constrói e reconstrói o cotidiano da cidade em sua obra. A imagem de São Miguel que adorna a abertura dos Ekos da Vila é assinada pelo artista, que transforma isopor, papelão, biscuit, tecido em peças sacras. Nascido em Rio Vermelho, Cláudio mudou-se para o Serro ainda pequeno. Atualmente, vive em São Paulo, mas passa temporada na cidade e anuncia: em breve exposição!


terça-feira, 6 de novembro de 2012

A FÉ QUE MOVE A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO


O sentido racional que o ser humano pretende dar ao mundo, muitas vezes é invadido por uma pequena palavra, ampla de significado: a fé. O que é fé? Como explicar este fenômeno mais que humano? Talvez a melhor maneira de entender este sentimento seja se aproximar dele. A sensação da fé é contagiante, tanto que mesmo os incrédulos se alimentam da sua força em momentos de comunhão. É quase inverossímil a possibilidade de uma pessoa que não tenha sido invadida por esta sensação pelo menos uma vez na vida. Quando desejamos muito alguma coisa, nos enchemos de esperança no “tudo vai dar certo”, nos imbuímos de fé. A torcida por uma conquista, seja ela qual for, é uma atitude de fé. A fé não é necessariamente um sentimento religioso, mas uma sensação para lá de humana.

No Serro, percorrer os caminhos da fé é deixar-se levar pelos cânticos e sonoridades da Festa de Nossa Senhora do Rosário. O Ekos de Minas mergulhou neste singular universo em muito boa companhia. A condutora da viagem rumo aos sentimentos desta manifestação mais que tradicional, histórica, foi Maria do Rosário Reis Simões, a historiadora Zara Simões, que tem seu nome vinculado a Nossa Senhora do Rosário e uma vivência concreta da fé em Nossa Senhora, já que é irmã do Rosário e participa sempre da Festa. Em sua tese de pós-graduação, Zara Simões escreveu sobre “A Fé que move a Festa, a Festa que move a Fé”, e resumiu nesta frase a singularidade desta manifestação cultural e religiosa: o paradoxo sobre a fé que faz com que a Festa seja realizada todos os anos, apesar da sua dimensão, e a contribuição da Festa para a manutenção da fé em Nossa Senhora do Rosário. A intenção de Zara Simões é a inspiração deste relato. Outros participantes da “Expedição Rosário” são o produtor Carlos Paulino, o irmão do Rosário Paulo Sérgio Torres Procópio e o fotógrafo Luiz Lopes - que emprestaram seu olhar ao Ekos de Minas; a russa Marina Kosinova, que experimentou  com convicção  os sabores da Festa, a pequena Érika Kosinova e Jane Reis  Simões.
O Catopê Sebastião Ramos e Zara Simões: “Eu não largo, não largo nunca,
só depois que eu morrer. Nossa Senhora do Rosário é nossa mãe”:
fala de Sebastião sobre a sua participação na Festa. 




Preparação 
Fé, devoção, expectativa, introspecção. Quando começa a festa de Nossa Senhora do Rosário no Serro? Aos mais desavisados, pode-se responder que é no primeiro domingo de julho. Mas ela começa ser gestada, mesmo, enquanto esta acontecendo. Festeiros são confirmados, encontros combinados, ideias de devoção e adoração a Nossa Senhora ressoam nas breves palavras da pressa em organizar as mesas e desejos. A Festa não para de ser preparada. Ela ocupa o imaginário e a vida das famílias que se envolvem  em sua realização, durante todo o ano. 
A Festa envolve a preparação de almoço na casa dos homens (Rei, 1º e 2º Juízes) e jantar na casa das mulheres (Rainha, 1ª e 2ª Juízas), no domingo para servir em média mil pessoas por refeição, segundo estima a rainha da Festa em 2012, Rosilene Rabelo. “O cardápio, cada um faz um diferente, mas o que não pode faltar é uma comida bem feita. Eu já vi muita coisa, e a gente procura fazer tudo do jeito que a gente já viu para manter a tradição”, explica Rosilene. Apenas na casa da Rainha, para a preparação do banquete, o Chefe de Cozinha Ronaldo Coelho Paulista estima que cozinhou cerca de 40 quilos de arroz, 20 quilos de macarrão, 35 quilos de feijão, sem contar legumes e verduras. “A carne nem dá para quantificar”, ressalta Ronaldo. “Para fazer comida para tanta gente é preciso amor e tempero. Levantar cedo, beber menos e se dedicar. Se eu vier para a Festa do Rosário e não for para a cozinha não vale”, conta o Chefe.
E a comilança não para por aí. Na segunda-feira é o dia dos doces. Para se ter uma ideia, apenas na casa do 1º Juiz, Lucas Diogo Farnezi Silva, e da 1ª Juíza, Rosimeire Margarida da Silva, este ano, para a preparação de parte dos doces - já que também são feitos os tradicionais doces de frutas - foram utilizadas mais de 50 latas de 1kg de leite condensado.  
Mesa de doces do 2º Juiz e 2ª Juíza


A Festa
São cinco horas da manhã de sábado, dia 30 de junho de 2012. No adro da Igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário, no Serro, a comunidade pede licença para abrir as portas da Festa em homenagem à Santa. Os gemidos dos negros cativos ecoam do pífaro e tambores da Caixa de Assovios e anunciam que é o momento de seguir a tradição, firmada pelo "Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rozário na Freguezia da Conceyção da Villa do Príncipe do Sêrro do Frio no Anno de 1728". 
As luzes estão apagadas e as portas da Igreja, fechadas. A Caixa de Assovio entoa sua "Ave Maria" por três vezes e por três vezes repicam os sinos e gritam os fogos de artifício na madrugada, contando aos que ficaram em suas casas que agora a Festa vai começar. As portas da Igreja e da Festa se abrem, as luzes se acendem e a Caixa de Assovios toca diante do altar: Nossa Senhora ofereceu simbolicamente a sua permissão para iniciar a Festa. “O principal da Festa é a Caixa de Assovios. Não porque eu sou o responsável, mas porque sempre foi assim. Todo ano a gente tem que estar na porta da igreja às cinco horas em ponto. Tudo que passar por perto ou certo ou errado, dou noticia. E se errar eu chamo a atenção. Todo mundo me respeita, mas não aceito qualquer pessoa para participar dessas coisas, porque é um compromisso”, ressalta Jadir Pereira da Fonseca, o Jadir Canela, tocador de pífaro e organizador da Caixa de Assovios.
Matina na Igreja do Rosário
Jadir Canela
“Ave Maria, Ela canta lá no céu. Ave Maria, Ela canta lá na Glória”: cânticos enfeitam as ruas do Serro na voz convicta e aguda de Dona Cesárea, e nos acordes acometidos de emoção dos coros e vozes dos Catopês. A ginga e mandinga dos filhos de Nossa Senhora do Rosário saem da Igreja e tomam o caminho das casas da Rainha, Rei, Juízes para anunciar a permissão concedida. Os festejos podem seguir com as bênçãos de Nossa Senhora. 
Então começa a fartura. Na casa dos festeiros, esperam e recebem o cortejo banquetes dignos de reis e rainhas. Na Matina, caldos, canjica, quitandas, toda a sorte de temperos alimenta a fome e os pecados de uma multidão afoita, que mal se contem para esperar que os donos da casa recebam as bênçãos pela comida ofertada e anunciem a liberação da mesa. Sacos, sacolas, bolsas, recipientes os mais diversos servem para armazenar a provisão da Santa, que deve durar, pelo menos, o limite de uma indigestão. E segue o cortejo: Primeiros Juiz e Juíza, comer, guardar, comer; Segundos Juiz e Juíza, comer mais, guardar mais, comer mais; Rainha, comer, guardar, comer, guardar e, finalmente, a casa do Rei, mais sacolas e bocas invadem a Festa.
Jantar na casa do 1ºJuiz e 1ª Juíza

O sem fim de comidas da Matina chega, enfim, aos descendentes de José Nunes Mourão, conhecido como Zé de Fina, e Guido Morais Costa, o Guido do Corte. Aqui imperam, por principio, os sacos e sacolas. A Festa é das cestas básicas, da carne, roupas e outros itens arrecadados e doados a quem se interessar em enfrentar a grande fila, que dobra os limites do casarão da Pousada Dona Tuca, onde acontece a doação (foto abaixo). Segundo Glorinha Mourão Orsini, filha de Zé de Fina, esta tradição começou quando seu pai foi Mordomo do Mastro, há mais de 50 anos, e decidiu levar a fartura da Festa de Nossa Senhora do Rosário para a mesa das pessoas menos favorecidas economicamente.  Carlos Roberto Nunes Leite, sobrinho de Glorinha, conta que a tradição de distribuir alimentos durante a Festa do Rosário, começou porque Zé de Fina encontrou uma pedra de diamante muito valiosa e, para agradecer a bênção, se propôs a doar a carne de um boi para as pessoas mais humildes. As duas versões levam ao Guido do Corte, dono de açougue na época, escolhido para providenciar o feito. Guido se propôs a dividir o boi e assim começou a fartura. Hoje, Marcelo Morais Costa, filho de Guido, assumiu a função de seu pai e Glorinha segue a tradição de Zé de Fina, e juntos mantém a distribuição de alimentos. “Faço como meu pai, fico na mesma posição que o meu pai. Corto a carne para ser distribuída”, se orgulha Marcelo, que contabiliza que, apenas este ano, foram distribuídos 900kg de carne (três bois) e mais de 1400kg de mantimentos e ainda roupas, brinquedos, balas, cobertores. 
Fila para a distribuição de donativos

À noite, é hora de outro festeiro, o Mordomo do Mastro, saudar Nossa Senhora - este ano os Mordomos foram Vagner Alexandre Santos e Fernando dos Santos. Na Igreja, a oração dos fieis renova a esperança e confirma a fé, enquanto os dançantes - que se apresentam sem as vestimentas - rumam à casa do Mordomo para buscar a Bandeira dedicada a Nossa Senhora. O cortejo retorna à Casa Santa e a Bandeira recebe as bênçãos do Vigário para então subir ao mastro, cravado no Largo do Rosário. A devoção e alegria das danças enfeitam o ritual, que é encerrado com fogos de artifícios.

As cores do Rosário
Alimento para a retina - que registra e inspira lembranças multicoloridas -, o domingo é o dia da apresentação dos Congados. Caboclos vermelhos, salpicados de cores, dançam a integridade e leveza dos índios. Sisudos Catopês acompanham o Reinado ao som da Caixa de Assovios, em cortejo suave e sublime, próprio dos que alcançaram a sabedoria. Marujos com espadas e soberba anunciam a chegada das esquadras portuguesas. 
Marujos

Caboclos

É também no domingo, que Caboclos e Marujos encenam a Embaixada, um ritual de encontro entre grupos rivais, que devolvem o caciquinho ou o gajeiro preso, como sinal de paz entre brancos e índios, que agora compartilham o mesmo território. É a união das raças: índios, brancos, negros - Caboclos, Marujos, Catopês. 

Despedida
Amanhece a segunda-feira dedicada ao segundo reinado, ou seja, é o dia da posse dos festeiros eleitos entre os irmãos do Rosário para conduzirem a festa no ano seguinte. O processo de eleição dos festeiros merece um aparte. É realizado no mês de maio e a escolha entre os candidatos ainda é realizada segundo a tradição: os votos são contabilizados com grãos, cada irmão apresenta sua escolha com uma semente, feijão para um, milho para outro e assim por diante. 
Segunda é também o dia dos doces: doce de leite colorido, doce de mamão, bombom, brigadeiro, cajuzinho, olho de sogra, bala delicia... e sacolas e sacos, muitas sacolas e sacos - deve haver os que passam pelo menos uma semana a doce!  É neste dia que os festeiros entregam aos escolhidos, para manter a tradição no ano seguinte, os símbolos do Juiz, a Vara; do Rei e da Rainha, a Coroa e o Cetro. A despedida é na Igreja do Rosário. E então é possível entender o poder, a força desta manifestação, que impõem ao rigor católico, a encenação de danças, cânticos e rituais outrora considerados pagãos: “Adeus campo do Rosário terreiro de sentimento, Adeus minha virgem Santa, esposa de São José. Até, até para o ano, se Deus Nosso Senhor quiser”.